Em 24 de janeiro de 2003, na terceira edição do Fórum Social Mundial, ainda no primeiro mês de governo, Lula fez um emblemático discurso para uma multidão no Anfiteatro Por do Sol, em Porto Alegre. Como membro do comitê organizador, eu estava lá. Fiquei caminhando no meio da multidão para sentir o clima entre os que ouviam Lula atentamente. Aliás, não eram necessárias muitas palavras, pois Lula personificava, naquele momento, muito do “outro mundo possível” que os participantes do FSM buscavam. Isto era particularmente verdadeiro para os milhares de estrangeiros presentes, sem entender português, mas felizes naquele ato. O fato é que a emoção de estar vivendo algo novo tomava conta daquele ambiente. É a maior lembrança que guardo do ato.
Passados 10 anos, uma jornalista me passou a transcrição do discurso com o objetivo de fazer uma entrevista. Lendo e relendo, fui lembrando da onda de esperança que havia tomado conta do país.
Lula, com aquela aguda intuição e capacidade de sintonizar com o que multidões sentem e querem, tinha consciência que seria cobrado depois. Por isto, traçou rumos, abriu horizontes, mais do que metas de governo. Penso que vale a pena a gente ver se em 10 anos temos novos rumos e se nosso horizonte se alargou.
De fato, o Brasil não é o mesmo de 10 anos atrás. Só não vê que mudou quem até agora não se conforma com um governo clara e amplamente apoiado por camadas populares da população, como sendo seu governo legítimo. Aliás, só isto já é uma grande mudança num país de tradição elitista, patrimonialista, latifundiária e autoritária, que nunca reconheceu verdadeiramente a cidadania, com igualdade de condição política, nos milhões de mulheres e homens trabalhadores, favelados, camponeses, quilombolas, indígenas, pobres e excluídos. O governo petista é expressão da vontade política dessas maiorias e, portanto, de sonhos e desejos de participar da moldagem do Brasil. Em 10 anos de hegemonia petista, estamos diante de uma nova realidade em termos econômicos, sociais e políticos, com um povão que estima seu governo e que recuperou sua própria autoestima. Isto não é pouco, mas, no meu modo de ver, não quer dizer que seja suficiente ou o único caminho, historicamente possível, para se avançar em termos de democracia, justiça social e sustentabilidade.
De fato, não precisou 10 anos para ver que o governo do PT não seria de reformas estruturais no modelo de desenvolvimento do Brasil. Pelo contrário, tratou-se de radicalizar uma dimensão de justiça social nas políticas e processos econômicos e sociais existentes, definindo patamares mínimos de inclusão, de ampliar a voz da cidadania pela abertura do Estado e seus órgãos à participação, ao menos para expressar demandas, e de fazer valer a emergência do poder do Brasil na geopolítica mundial. Isto tudo aconteceu de forma inovadora e é de celebrar. O PT mostrou que é possível fazer hoje justiça social e crescer no capitalismo, ao mesmo tempo, que a participação cidadã engrandece a democracia e não afeta a tal eficiência do Estado e suas políticas, que o mundo espera do Brasil, de sua ativa cidadania, novas respostas para a gestão compartilhada do Planeta que a humanidade tem em comum.
A lista de feitos é grande. Lembro aqui as políticas para enfrentar a exclusão social e desigualdade: Bolsa Família e segurança alimentar, políticas afirmativas para a promoção de igualdade étnica, racial, de gênero, ações em favor dos não plenamente reconhecidos como cidadãos (por serem portadores de deficiências, idosos, por suas orientações sexuais). As políticas agressivas em termos de direito ao trabalho e renda: geração de milhões de empregos com valorização sistemática do salário mínimo – salário de referência para a maior parte dos contratos de trabalho – , facilitação do acesso ao crédito, aumento sistemático do Pronaf e política de compras pela CONAB de alimentos da agricultura familiar. As políticas de educação, talvez as menos reconhecidas: valorização do magistério, expansão do ensino universitário público e o Pro-Uni, cotas e SISU, expansão de escolas técnicas profissionalizantes. Políticas de participação cidadã, uma marca do jeito petista de governar: as conferências nacionais, desde o município e os estados até o nível federal, mobilizando milhões de pessoas, mesmo sem poder deliberativo, mas ativadores da cidadania e termômetros das demandas; a multiplicação de conselhos paritários, uns mais influentes que outros, mas uma realidade institucional da democracia brasileira hoje; a abertura das portas do Palácio do Planalto ao povão, quebrando barreiras entre cidadania e governantes. E, finalmente, mas não menos importante, é o acesso de milhões a bens e serviços antes impossíveis, popularizando o consumo e ampliando enormemente o mercado interno, puxando o próprio crescimento do país. No plano da economia, mais que celebrar uma década de crescimento, destaco a decidida política recente de redução dos juros, quebrando uma perversa lógica de fazer riqueza fácil por rentistas financiando o Estado, uma herança maldita de longa data.
Valter Campanato/ABr
Mas o que poderia ser feito, com a grande legitimidade conquistada nas urnas e na prática política, que não aconteceu, também é uma lista grande. Ao invés de investimentos para garantir o direito à mobilidade, incentivou-se o carro individual, com redução de impostos e crédito facilitado, congestionando e parando as cidades, das grandes até as pequenas. Na segurança pública pouco se inovou e continuamos com medo e, pior, vendo cidadãos exterminados sumariamente. Está se fazendo algo em termos do enorme déficit de moradia, mas continuamos não enfrentando a vergonhosa negação do direito à água e ao saneamento de amplas camadas populares nas nossas cidades. Em matéria de prevenção, sobretudo num país de chuvas tropicais torrenciais, continuamos uma nulidade. Talvez na saúde resida o câncer maior, literalmente. Os esforços são notáveis, os resultados ainda pífios. Não é possível que o Brasil não possa ter uma garantia do direito à saúde para todos e todas, sem distinção, no nível em que se encontra! No plano das relações mundiais, o Brasil moldado pelo PT é um ator ouvido hoje, mesmo se discordamos do modo como isto se faz. Pessoalmente, acho que a mudança mais importante seria ver se o que fazemos é o que o mundo precisa, o que a cidadania planetária demanda, esquecendo o imperialista “interesse” nacional. Ser mais uma potência dominadora, com veto do Conselho de Segurança, não é o caminho para criar outro mundo.
Mas, para finalizar, destaco a mudança fundamental que faltou. Tem a ver com o paradigma econômico. O PT vai ser responsabilizado por não ter usado a sua legitimidade para apontar no rumo de um novo modelo econômico e social, de participação, justiça social e sustentabilidade, tudo junto. Não basta fazer crescer o que aí está e impor parâmetros de justiça social para melhor distribuir riquezas geradas. Mudanças substantivas na economia são necessárias para atender parâmetros de democracia e justiça social. O agronegócio cresceu espantosamente nos governos petistas e a reforma agrária ficou para calendas gregas. Nas minhas estimativas, 70 mil grandes propriedades do agronegócio no Brasil têm 200 milhões de hectares, um quarto do território nacional. Ao mesmo tempo, uns 4 milhões de famílias penam para ter terra ou ampliar suas terras e poder se inserir. O modelo no campo brasileiro é excludente e festejado pelo seus sucessos econômicos, isto no governo do PT! O modelo econômico que foi reativado pelos governos do PT aponta as mesmas opções estratégicas de antes: exportações baseadas em “commodities” minerais e agrícolas, agronegócio, grandes projetos sob a liderança de grandes grupos econômicos e financeiros, energia mesmo ao custo de impactos socioambientais, industrialização e consumismo individual como condição. Enfim, um modelo que é responsável pela crise social, ambiental e climática que a humanidade enfrenta. Nada avançamos em termos de mudança de rumo, buscando a sustentabilidade da vida e da sociedade ao invés da sustentabilidade de uma economia condenada.
O desafio que temos após 10 anos de governo do PT é como criar uma nova onda de mudanças democráticas no país, mais radicais em termos de mudança estrutural, de direitos e de participação cidadã, de sustentabilidade da sociedade com respeito ao nosso bem comum maior, o patrimônio natural de que somos gestores. Não temos como avançar em justiça social sem enfrentar a questão da sustentabilidade. Isto ainda está longe do ideário do PT.
Cândido Grzybowski, sociólogo e diretor do Ibase
Colunista do Canal Ibase
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